Portas iguais, mas não a mesma porta

S7M19 era uma das bases artificiais mais antigas da região controlada por Marte. Ela era utilizada como porto para transações comerciais que precisavam de autorização especial para chegar até o planeta vermelho. Era muito comum encontrar cargas de contrabando em S7M19, assim, vários piratas podiam ser vistos ali.

Como algumas cargas esperavam até meses para serem liberadas, a base contava com áreas muito agradáveis para quem quisesse se hospedar naquela região. Nas áreas habitadas, havia uma pequena cidade que reproduzia a vida badalada dos grandes centros de Marte e outra que reproduzia os campos tranquilos da antiga civilização que se formou no tempo em que Vênus foi habitado.

Capítulo 07

Portas iguais, mas não a mesma porta

Seguindo a pista do cristal deixado pela deusa tatuada, Artemísia chegou à base artificial S7M19, nas redondezas de Marte.

Artemísia andava pelas ruas do tranquilo vilarejo em S7M19, onde se via árvores frondosas, flores coloridas, um imenso tapete de grama verde cobrindo quase toda a região e casas aconchegantes, produzidas com uma arquitetura simplista e arredondada. Tudo isso envolto por uma enorme cúpula cristalina. A venusiana seguia as coordenadas que levavam até uma loja de antiguidades, no meio do campo. Ela alugou uma phantom e em cinco minutos estava no meio do nada, cercada por natureza por toda parte. No lugar só havia uma construção, que lembrava os antigos palácios europeus da Terra. Artemísia estacionou a phantom em um pátio, na entrada, e um androide andou até ela.

— Olá, minha jovem! Em que posso ajudá-la? — Artemísia descia da phantom.

— Me disseram que eu encontraria o mestre Katsuo aqui. — O androide leu a retina de Artemísia.

— O mestre Katsuo só recebe visitas agendadas. Creio que… — O androide fez uma pausa, como se estivesse recebendo informações. — O mestre a aguarda. Venha comigo, por favor!

Os dois entraram no prédio imponente. O salão de entrada era enorme, tinha o chão enfeitado com mosaico, nele havia várias estátuas antigas e no centro uma escadaria dupla, que levava até o andar de cima. Enquanto subia as escadas, Artemísia admirava os quadros nas paredes, eram diversas obras de tamanhos variados, de tempos variados.

Ao fim da escada eles seguiram por um largo corredor, onde se via uma tapeçaria que lembrava as histórias dos antigos reis da Terra. Mobília antiga, vasos antigos, quadros antigos e portas feitas de madeira antiga enfeitavam o lugar. Tudo estava à venda.

— Vejo que essa é a maior loja de antiguidades do Sistema! — Artemísia estava encantada com tudo.

— Sim! A maior e mais completa loja de antiguidades de todo o Sistema Apolo! — O androide disse, orgulhoso. Os dois chegaram à entrada de uma biblioteca. As portas eram de madeira, assim como toda a mobília da enorme sala que guardava livros de tempos imemoriais. Ao fundo, atrás de uma mesa imponente, um homem jovem, de cabelos pretos, lisos, estatura mediana e olhos amendoados se levantava sorrindo de sua enorme cadeira acolchoada. Ele andou até a frente da mesa e se encostou nela para receber a venusiana.

— A que devo a honra dessa visita? — O jovem sorria com a boca e com os olhos. Artemísia se aproximou devagar. O androide saiu da biblioteca e fechou as portas ao deixar o lugar.

— Pelo visto não preciso me apresentar.

— A grande guerreira de Apolo não precisa de apresentações. Já esse humilde servo das elites não é muito conhecido por aí. Katsuo, às suas ordens! — O jovem abaixou suavemente a cabeça. Artemísia estava perto dele e retirou o cristal da mochila.

— Você conhece isso? — Katsuo observou a peça na mão da venusiana.

— Hum! Sim. Mas pensei que fosse só uma lenda. — O jovem sorriu e olhou nos olhos da guerreira.

— A mensagem que havia nele me trouxe até aqui. O que tem pra mim? — Katsuo se afastou da mesa e andou na direção de uma das estantes com livros.

— Me siga, por favor! — Artemísia foi atrás do jovem mestre. Ele abriu uma portinha de metal, igual à porta da sala de antiguidades no templo de Arûara, uma porta escura, cheia de inscrições misteriosas e com o símbolo do Sol e da Lua cravado nela. Ver aquela porta acionou um gatilho na mercenária, que a fez parar. Katsuo atravessou a porta, mas ao perceber que a venusiana estava pálida ficou intrigado. — O que foi?

— Nada, é que…

— Sim!

— A última vez que atravessei uma porta igual a essa tive problemas sérios.

— Onde você encontrou uma porta igual a essa?

— Em um templo, na Terra. — Katsuo ficou pensativo.

— Em uma cidade flutuante?

— Exato.

— Hum! — O jovem sorriu. — Me lembro dessa venda. — Ele olhou para Artemísia. — Mas não se preocupe, aquela porta era parecida com essa, mas com certeza não era a mesma, logo, essa porta te levará para um destino diferente. A venusiana se acalmou e seguiu Katsuo, que desceu por escadas estreitas, feitas de pedra em espiral. À medida em que desciam, luzes iluminavam o lugar.

Ao fim da escada eles chegaram a um salão de armas.

— Quem diria? Um fabricante de armas escondido atrás do sorriso acolhedor de um vendedor de antiguidades…

— Sou só um simples vendedor. O verdadeiro mestre aqui é Tenko, o androide que a recepcionou.

— Ele vem de uma linhagem antiga de androides fabricantes de espadas.

— Sim. A mesma linhagem que serviu ao Clã por gerações.

— Acho incrível como sempre me esbarro com o Clã, mesmo após a humanidade já ter se livrado daquela maldição.

— Não existem maldições, cara Artemísia. O que existe é a vida seguindo seu curso através da lei de…

— Causa e efeito. Sim, eu sei. Mas sou do tipo que se satisfaz em ficar reclamando de tudo, me desculpe por não ter superado meus condicionamentos primitivos ainda.

— Eu que peço desculpa por minha intromissão. É automático, ou seja, também vivo preso a condicionamentos. — Os dois riram. — Bem! O que veio buscar está aqui. — Katsuo foi até um cofre na parede, enquanto o seguia Artemísia teve sua atenção roubada por uma espada que estava exibida em um suporte de madeira sobre uma mesa rústica, comprida. O jovem abriu o cofre e no meio de várias peças antigas ele pegou uma pequena caixa de metal, toda ornamentada. Katsuo fechou o cofre e viu Artemísia segurando a espada, hipnotizada por ela. — Bonita, né? — O jovem disse ao se aproximar da venusiana. 

— Você é bonito, ela é perfeita! — Artemísia olhou para Katsuo e sorriu. — Quanto custa?

— Essa espada não está à venda.

— Como assim?

— É uma peça muito antiga. Ela foi forjada para Dâmocles.

— Dâmocles, o Salvador?

— Sim. O homem que possibilitou ao Clã sobreviver fora da Terra após a catástrofe que mudou todo o destino da humanidade. — Artemísia suspirou. —Sem ele você não existiria, já pensou nisso?

— O que significa que sem essa espada eu não existiria, talvez por isso ela chamou a minha atenção.

— Vendo dessa forma, seu destino está ligado a essa espada. Ela é sua. — Artemísia olhou confusa para Katsuo.

— Mas você disse…

— Pois é, ela nunca esteve à venda. Meu avô, de quem herdei a loja, me disse que ela esperava pelo verdadeiro dono. Perguntei quem seria essa pessoa e ele me disse: “a espada lhe dirá”.

— Como tem certeza de que sou a verdadeira dona da espada?

— Sua história está diretamente ligada à história dessa espada, só isso já a tornaria apta a levá-la. Mas se eu estiver errado, de alguma foram a espada voltará para esta loja e aqui ficará até que seu dono a encontre. Ela foi programada para isso. 

— Reconhecimento de DNA e indução psíquica.

— Exato! Quem a forjou recebeu ordens bem específicas.

— Hum! — Artemísia sorriu com satisfação e colocou a espada sobre a mesa. — Pode embrulhar então que vou levar.

— E não se esqueça disso! — Katsuo entregou a caixinha de metal para a mercenária.

— Deixa eu ver se adivinho o que tem aí dentro. — Artemísia abriu a caixinha. — Olha só! Um cristal! Quem diria? — Katsuo riu do deboche.

— Sinto que a espada nova e o cristal irão te ajudar a encontrar o que procura.

— Espero que sim! — A filha do Clã sorriu. — Muito obrigada!

Katsuo e Tenko foram se despedir de Artemísia no pátio da entrada. Após a despedida ela subiu na phantom e seguiu para o vilarejo, mas na metade do caminho o veículo parou.

— Que droga! — Artemísia chutou a phantom. — Lata velha de merda! — Artemísia olhou ao redor, era uma região de campo aberto, sem nenhuma construção por perto. — O jeito é andar, né? — A espada de Dâmocles estava embrulhada em tiras de couro e havia uma espécie de alça nesse case improvisado. A mercenária colocou a alça do case da espada nova atravessada no peito e a mochila no ombro, então deu os primeiros passos para a caminhada que levaria pouco mais de uma hora até o vilarejo. 

— Quer companhia no passeio? — Maya saiu de trás de uma das árvores. Artemísia parou e sorriu irritada ao ouvir a voz da irmã gêmea de Arûara.

— Se queria uma carona era só pedir, não precisava estragar a phantom. — Artemísia se virou para Maya, que estava se aproximando.

— Mesmo sendo um idiota, Arûara era meu irmão e acho que esperei demais pra me vingar pela morte dele.

— Se vingar? Sério? — Artemísia jogou a mochila no chão.

— Como se você não soubesse que esse dia chegaria…

— Pelo que me disseram você assumiu o templo e colocou seu amante como mestre para poder ter liberdade pra fazer seja lá o que você gosta de fazer por aí.

— De fato não gosto de me prender a nada, mas só serei livre após cumprir a promessa que fiz ao meu irmão.

— Você acha que vai me matar, é isso?

— Eu vou te matar. É isso. — Maya se teletransportou, puxou a espada no coldre de Artemísia e tentou cortar o pescoço da venusiana, que não sangrou. — Maya ficou intrigada, Artemísia sorriu.

— Aprendi novos truques, maninha! — A mercenária explodiu uma onda de energia ao seu redor, jogando Maya para longe. Artemísia desenrolou a espada de Dâmocles. Ao longe Maya se levantou segurando a espada ancestral de Artemísia e as duas começaram a se aproximar, lentamente, enquanto pequenas ondas de energia se formavam ao redor delas, fazendo com que a grama se mexesse. As duas estavam se carregando de energia cósmica para o combate.

Com o olhar fixo uma na outra, Artemísia e Maya se aproximaram e conversavam andando lentamente em círculo.

— Essa vingança não faz o menor sentido, você sabe disso.

— Não importa. Por alguns minutos, esse combate vai me tirar do tédio de existir, já é o suficiente pra mim. — Maya sorriu com o olhar fixo em Artemísia, que deu de ombros.

— Não quero lutar com você. Tenho coisas mais importantes pra fazer no momento. — A mercenária deu as costas para a irmã de Arûara e começou a andar, se afastando dela. Maya sorriu e atacou com uma rajada de energia. Artemísia ativou um campo energético ao redor de seu corpo e continuou andando, sem olhar para trás. Maya se teletransportou para a frente da mercenária.

— Lute ou morrerá. São essas as suas escolhas no momento. — Maya ergueu a mão e ao estalar os dedos fez com que o campo ativado por Artemísia se desfizesse. A venusiana suspirou e se protegeu com a espada quando Maya tentou atacar.

— Que merda! — Artemísia deu um soco no rosto de Maya, ela deu um soco forte no estômago da mercenária, que reagiu tentando cortar o tronco da oponente na transversal. Maya se afastou para fugir do ataque enquanto erguia a espada ancestral.

As espadas se chocaram e as duas começaram uma luta que durou horas, enquanto percorriam o belo campo aberto em S7M19. No alto, a enorme cúpula transparente parecia ampliar a intensidade dos raios do Sol.

Artemísia e Maya já estavam ofegantes, suas espadas criavam belas melodias ao se chocar no ar e perto de seus corpos. Após um golpe, as duas mulheres ficaram frente a frente, com seus rostos quase colados um no outro. Por um breve momento a venusiana viu Arûara nos olhos da irmã. Ela perdeu a concentração e se afastou rapidamente. Maya percebeu.

— Você não está louca. — Maya disse com um sorriso sarcástico. — De alguma forma, meu irmão ainda vive dentro de mim. — Artemísia se afastou mais. Maya andou lentamente até ela. — É por isso que não queria lutar comigo, certo? — A irmã de Arûara sorria vitoriosa falando ao ouvido da venusiana. — Você ainda me ama. — Maya disse sussurrando. Artemísia ouviu a voz de seu antigo mestre. Em uma fração de segundo, toda a vida da mercenária passou como um filme em sua mente. Ela esticou o corpo e olhou com firmeza nos olhos de Maya.

— Arûara era só um ser humano perdido, como eu, como você, como todos da nossa espécie. Amá-lo ou odiá-lo dá a ele um valor excessivo. Dá a ele um poder fictício, um poder que ele não tem, um poder que só existe na minha imaginação e que por existir na minha imaginação causa um efeito exclusivo sobre mim. — Maya ficou curiosa e se afastou um pouco para ouvir o que Artemísia tinha a dizer. — Itá me falou sobre perdão, mas depois percebi que não se trata de perdoar, mas sim de reconhecer a verdade: somos todos iguais, funcionamos da mesma forma e agimos de acordo com nossas necessidades, reais ou imaginárias, logo, somos seres complexos, incríveis, e ao mesmo tempo patéticos. — As duas riram. — Quem se apega a um ser humano, seja por amor ou pelo ódio, não faz outra coisa além de se apegar a uma ilusão. Tomando consciência disso, seu irmão perde a importância que um dia dei a ele. Arûara foi só mais um ser humano que cruzou o meu caminho e me desafiou a superar as minhas fraquezas. Meu ódio e minha mágoa não foram causados por ele, a causa estava em mim, eu que fraquejei diante dele, eu que abdiquei do meu poder, da minha força e da minha determinação pra superar as fraquezas que ele expôs. Como um mestre me disse, Arûara foi pra mim como um espelho e tive ódio da imagem que ele refletiu. Mas essa imagem era só mais uma ilusão e hoje ela se desfez. — Maya ficou séria.

— Você fala como se as emoções não fossem importantes para nós, humildes mortais.

Hoje eu sei o que as emoções significam em nossas vidas. É através das emoções que exercemos o dom de criar. São as emoções que nos impulsionam a fazer conexões com outros seres, são elas que nos impulsionam a desvendar os segredos do universo, a viajar por regiões desconhecidas, a criar meios pra expandir o nosso cenário na existência. São as emoções que nos permitem expandir nossa consciência e fazer despertar poderes que nem imaginávamos que existiam. — Artemísia abriu a mão direita e fez com que uma luz rosa brilhasse nela por um instante, depois fechou a mão e a luz se apagou. — São as emoções que nos ajudam a escrever a nossa história, logo, sim, elas são muito importantes, mas perceba que se deixarmos as emoções escreverem essa história ela se torna aleatória e nossa vida fica caótica, um drama sem fim, mas quando somos nós que controlamos as emoções, a vida pode ser o que a gente quiser que ela seja, pois assumimos o poder de criar, o poder de escolher quais são as conexões que nos interessam e quais não têm valor algum pra nossa narrativa. — Maya sorriu.

— Uma mercenária que trilha o caminho dos sábios… — Maya se aproximou. —   Eis aí uma personagem interessante. — A irmã de Arûara estava bem perto, quase colada ao corpo da venusiana. Ela admirou o rosto da mercenária, a olhou fixamente nos olhos e a beijou com doçura. Depois se afastou um pouco. — Hoje entendo porque você tinha tanto poder sobre o meu irmão. — Maya deu um suspiro e jogou a espada ancestral no chão, depois se virou e deu alguns passos.

— E a vingança? — Artemísia perguntou em tom de deboche, Maya ignorou, deu mais alguns passos e desapareceu. A venusiana riu. Ao longe a phantom ligou sozinha, Artemísia olhou para o veículo aliviada. Ela se abaixou e pegou a espada ancestral, depois seguiu na direção da phantom. — Bora, né?

Alguns ciclos depois…

No templo de Arûara, Shaka treinava os discípulos no pátio, como de costume. A manhã estava tranquila e agradável. O mestre deu algumas instruções e foi para a varanda, de onde observava os discípulos em atividade. Ele estava de pé, com os braços cruzados atrás das costas.

— E então? — Shaka perguntou ao sentir Maya se aproximando.

— Ela encontrou o penúltimo cristal. Está mais forte que nunca e ainda guarda o idiota no coração. — Shaka olhou para a irmã de Arûara.

— Você a beijou.

— Sim. Ela baixou a guarda e aproveitei para colher informações.

— Ela encontrou o penúltimo cristal, mas vai finalizar a busca pelo Muiraquitã?

— Com toda certeza! — Maya sorriu.

— O que te dá tanta certeza?

— Ela já passou por todas as fases que precisava para evoluir o suficiente para ficar de frente com Îasy. Agora é questão de tempo até que a deusa permita que esse encontro aconteça.

— Artemísia já chegou ao Nirvana?

— Ainda não, mas já é digna de estar na presença dos deuses mais antigos. — Shaka soltou os braços e segurou com leveza nos ombros de Maya.

— Você ainda é capaz de vencê-la? — Shaka olhou profundamente nos olhos da mestra.

— Sim! — Maya sorriu. — Não se preocupe.

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